Por Anne Warth - arquivo pessoal

Ser instada a assumir a persona que precisa lutar – e vencer – essa doença é um fardo adicional que em nada contribui com o sucesso do tratamento.

A passagem do mês de outubro, para muitas mulheres, remete à campanha contra o câncer de mama. Na maioria das vezes, o processo se resume à realização de exames de imagem aos quais ninguém se submete na expectativa de receber um resultado ruim, ainda que as estatísticas apontem que uma em cada oito mulheres vão desenvolver a doença em algum momento de sua vida. Sou uma delas. Exponho aqui uma experiência pessoal, pautada no reconhecimento de que há um antes e um depois do câncer. No meu caso, um depois que não teve dimensões heroicas nem trágicas, mas profundamente transformadoras.

Fui diagnosticada aos 33 anos de idade. Passei por um longo tratamento e tive a chamada remissão completa, algo que costumamos chamar de cura. Continuo sob acompanhamento médico, o que significa que faço exames com uma constância maior do que gostaria. Sete anos já se passaram sem que eu tenha tido recidivas. Sou, portanto, a típica personagem que todos gostam de ver nas reportagens sobre o Outubro Rosa: a mulher que “venceu a batalha” contra o câncer, palavras que não coloco entre aspas por acaso.

Diferentemente de mim, a atriz Olivia Newton-John morreu em 8 de agosto, aos 73 anos, em consequência de um câncer de mama. Sua doença, descoberta em 1992, voltou a se manifestar duas vezes, em 2013 e 2017. O avanço da medicina revolucionou o tratamento a ponto de dar à artista uma sobrevida de 30 anos após o diagnóstico, período ao longo do qual ela viveu plenamente. Gravou músicas, atuou em filmes e séries de TV, separou-se do pai de sua filha e casou-se pela segunda vez. Tornou-se ativista ambiental, criou uma fundação para financiar pesquisas sobre câncer e doou parte de sua fortuna para um hospital público que atende pacientes oncológicos. Alguém teria a coragem de dizer que Olivia Newton-John “perdeu a batalha” contra o câncer? Ela pode, sim, ter morrido em razão de um câncer, mas jamais permitiu que a doença definisse sua existência.

Termos bélicos são usados para descrever a trajetória de todo paciente oncológico. Essas palavras, no entanto, embutem significados que não têm qualquer relação com a realidade vivenciada por quem passa por um tratamento contra uma enfermidade grave. Comparar uma doença a uma batalha nos limita ao papel de vencedoras ou perdedoras, coloca uma enorme responsabilidade sobre a paciente e, pior, deixa implícito que a “derrotada” não lutou o suficiente. Se ter um câncer já é difícil, ser instada a assumir a persona que precisa lutar – e vencer – sob essas condições é um fardo adicional que em nada contribui com o sucesso do tratamento.

Como “vencedora”, rótulo que rejeito, fui diagnosticada numa fase inicial e tive acesso ao melhor tratamento disponível. Contei com apoio familiar, profissional e de uma ampla rede de amigos. São fatores que ajudam, mas não garantem a cura, e que tampouco me tornam melhor do que mulheres que desenvolveram metástases ou vieram a falecer em razão do mesmo câncer que tive. Se há parâmetros científicos que estimam as chances de resposta ao tratamento e a sobrevida após o diagnóstico, há também a influência de componentes imponderáveis que passam por fé, sorte, destino ou mero acaso, a depender da crença de cada um.

No período mais intenso do tratamento, cumpri estritamente o que os médicos recomendaram, um roteiro que me deu pouco espaço para escolhas ou tempo para pensar sobre elas. Encerrada essa fase, fui tomada por emoções contraditórias, da alegria à tristeza, da confiança ao medo. A passagem dos anos gerou algumas reflexões que divido neste espaço.

Não temos controle sobre o que acontecerá com cada um de nós – nem os pacientes oncológicos, nem as pessoas que nunca terão um câncer. Seguimos vivendo apesar disso, sem garantias de que seremos bem-sucedidos. O câncer me impôs perdas, mas me proporcionou um genuíno autoconhecimento, humildade perante a vida e a morte e a consciência de que é possível ter dignidade diante dos maiores sofrimentos. Que fique claro: não há, de minha parte, gratidão por ter tido a doença, mas o reconhecimento de que, se não temos domínio sobre as coisas que acontecem em nossa vida, temos liberdade para decidir de que forma vamos lidar com elas. Nesse sentido, o tempo que nos resta importa menos do que aquilo que fazemos com ele.

Aproveito para me solidarizar com as mulheres que já tiveram câncer de mama e para convidar todas as outras a fazerem seus exames, pois um diagnóstico precoce pode realmente fazer a diferença – como fez no meu caso. Dito isso, ao reconhecer que o tratamento não assegura a cura, enfatizo que ter acesso a ele é definitivamente fundamental. Admito que a quimioterapia é debilitante, mas destaco que há medicações capazes de atenuar seus efeitos colaterais. Sou a primeira a assumir que a ideia de perder o cabelo é devastadora, mas posso dizer que raspar a cabeça pode ser surpreendentemente libertador. Reitero que sobreviver a um câncer não é uma questão de merecimento, e finalizo com a profunda convicção de que câncer não se vence, trata-se (O Estado de S.Paulo, 23/10/22)

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