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Legenda: Como numa viagem marítima, há limites sobre o que podemos controlar em nossas vidas. Foto Alex Walker/Getty Images
Era uma vida de dificuldades. Nascido na escravidão, em um momento seu escravizador quebrou sua perna, deixando-o com uma deficiência.
Libertado mais tarde, ele passou 25 anos seguindo sua vocação - apenas para sua carreira ser proibida pelo ditador da época. Ele fugiu para o exterior, a vida no exílio e a pobreza.
Esses detalhes biográficos básicos são quase tudo o que sabemos sobre a vida do filósofo Epicteto, nascido em torno do ano 55 DC. Enquanto algumas das informações são contestadas - não temos certeza se ele nasceu escravizado ou foi tomado como escravo ainda jovem -, é sabido que ele não teve uma vida fácil.
Nem era seu mundo um lugar plácido e previsível: se ele veio para Roma de seu lugar de nascimento, na atual Turquia, em torno do ano 65 DC, como alguns acreditam, então ele teria tido uma infância turbulenta.
Ele pode ter testemunhado tanto o incêndio que destruiu dois terços da cidade e vivido um ano tão politicamente turbulento que teve quatro imperadores diferentes, sendo dois assassinados e um que se matou.
Ainda assim, Epicteto tinha tudo de que ele precisava. Afinal, ele dizia - segundo, pelo menos, um estudante que cuidadosamente anotou seus ensinamentos - que "não são acontecimentos que perturbam as pessoas, são seus julgamentos a respeito deles".
Essa ideia é um dos pilares da escola filosófica conhecida como estoicismo, fundada quase 400 anos antes pelo filósofo Zenão, em Atenas, durante o tumulto, as crises e a violência do século 4 AC.
Também é um dos muitos ensinamentos da escola com o qual ainda podemos aprender - o que pode ser a razão pela qual nós vemos seus ecos em tanta psicologia, autoajuda, literatura e mesmo religião de hoje em dia.
Seja guerra ou pandemia, nossa saúde ou finanças, não importa o tamanho do desafio nas nossas vidas, dizem os estoicos, ainda assim nós podemos prosperar. Eles devem saber o que dizem: o estoicismo foi uma escola "construída para tempos difíceis", escreve Kare Anderson, buscando dar a pessoas um guia para a boa vida mesmo quando o mundo em torno delas é imprevisível e turbulento.
Abaixo, seguem algumas das principais mensagens que os estoicos podem oferecer pra tempos incertos:
Como Epicteto disse, para os estoicos não é coisa em si mesma que causa a turbulência. É como você pensa sobre ela.
Poucas coisas causam mais sofrimento do que lutar contra circunstâncias que estão fora do seu controle ou ficar apegado a um resultado sobre o qual você não tem poder.
O primeiro obstáculo - um tão importante que Epicteto o chamou de "nossa maior tarefa na vida" - é identificar o que está fora do seu controle, aspectos que os estoicos chamam de "externalidades".
Felizmente, os estoicos explicaram de forma mais simples: trata-se de tudo além de seus próprios pensamentos, escolhas e ações. A saúde, por exemplo. Você pode escolher comer cinco legumes, verduras ou frutas por dia e se exercitar (escolhas suas), mas isso não significa que você nunca sofrerá de problemas de saúde (uma externalidade). Se você acha que significa, você não está apenas se iludindo. Você está se colocando no rumo de uma verdadeira decepção.
Legenda: Os filósofos estoicos diziam que devemos encarar emoções, mas sem sermos dominados por elas. Foto Peter J. Hatcher/Alamy
Como é muito fácil para nós confundirmos o que podemos com o que não podemos controlar, Epicteto recomendou adotar este hábito mental: "No caso de coisas específicas que te satisfazem ou beneficiam, ou às quais você ficou ligado, lembre-se do que elas são. Comece como coisas de pouco valor. Se for de uma caneca de cerâmica que você gosta, por exemplo, diga 'Eu gosto de uma caneca de cerâmica'. Quando ela quebrar, você não ficará tão chateado", aconselhava ele.
De forma controversa, os estoicos foram além. Embora possamos preferir ter boa saúde ou que um ente querido viva, tais externalidades não são "boas" ou "más" em si mesmas. Na verdade, argumentam eles, persegui-las pode às vezes nos colocar em circunstâncias ainda piores.
Claro, admitiam eles, que lutar por essas coisas era parte do que é ser humano. Mas, se você entendesse que qualquer externalidade não era algo garantido para você, você tinha de aceitar e deixar para lá.
"É como ir numa viagem pelo oceano", disse Epicteto. "O que você pode fazer? Escolher o capitão, o barco, a data e a melhor hora para navegar. Mas então vem uma tempestade. Bem, não é mais comigo; eu fiz tudo o que eu podia. Agora o problema é de outra pessoa - nesse caso, o capitão."
Como você não pode controlar essas externalidades, diziam os estoicos, também não serve para nada você ficar perturbado por causa delas. Afinal, nenhum desses "indiferentes" são realmente necessários para nossa felicidade - no final, tudo o que importa é como nós nos comportamos diante deles.
Se isso soa familiar nos dias de hoje, é porque já foi ecoado em vários mantras e tipos de autoajuda durante anos - sejam os ensinamentos (que não deixam de ser controversos) da autora Byron Katie sobre "amar o que é" ou simplesmente o clichê moderno "é assim mesmo".
Isso nos leva a um segundo princípio do estoicismo. Aceitar as circunstâncias fora do nosso controle não significa ser passivo, porque você sempre controla algo crucial: você.
"Se você está fazendo seu devido dever, não deixe que importe para você se você está sentindo frio ou calor, se você está com sono ou se dormiu bem, se homens falam mal ou bem de você, mesmo se você está no momento de morrer ou fazendo outra coisa: porque mesmo isso, o ato em que morremos, é um dos atos da vida, então também aqui 'fazer o melhor que você puder' também é suficiente", escreveu Marco Aurélio, o famoso imperador-filósofo romano, em seus diários conhecidos como as Meditações.
Legenda: Como os ucranianos sabem, é um grande desafio lidar com algo fora do nosso controle. Foto Omar Marques/Getty Images
Em particular, os estoicos recomendaram encarar cada desafio com justiça, autocontrole e racionalidade. Enquanto eles entendiam que "paixões", como raiva ou pesar, eram emoções humanas naturais que provavelmente iriam emergir, eles tinham pouco tempo para elas, vistas por eles como sinais de que você está ligado demais a um resultado que está fora de seu controle.
Sêneca, também um dos mais conhecidos defensores do estoicismo, tinha palavras particularmente mordazes para o senador romano Cícero, que "não tinha nem paz na prosperidade nem paciência na adversidade". Em um momento particularmente negativo, escreveu Sêneca, Cícero escreveu uma carta em que ele lamentava seu passado, reclamava do presente e se desesperava em relação ao futuro.
"Cícero se considerava um semiprisioneiro, mas realmente e verdadeiramente o sábio homem não irá longe o suficiente para usar um termo abjeto", disse Sêneca, repreendendo o senador. "Ele nunca será um semiprisioneiro, mas sempre desfrutará uma liberdade que é sólida e completa, com a liberdade de ser seu próprio mestre e mais alto que todos os outros."
Não apenas é possível permanecer calmo diante de uma situação terrível, mas aqueles desafios são exatamente a forma com que nós aprendemos a ser calmos, tanto que eles deveriam ser saudados - uma ideia que segue viva neste aforismo dos tempos modernos: "aquilo que não te mata te deixa mais forte".
Pode até mesmo ser um sinal de que os deuses estão a nosso favor, sugeriu Sêneca: afinal, os deuses querem que "bons homens" sejam tão formidáveis quanto possam ser, então faz sentido que eles enviem testes para aquelas pessoas em particular.
Tais desafios também nos permitem entender melhor a vida em geral. "Ter sorte o tempo todo e passar a vida toda sem sofrimento mental significa permanecer ignorante sobre metade do mundo natural", escreveu Sêneca.
Então existe a imprevisibilidade sobre como tudo pode acabar: Sêneca e os estoicos acreditavam que precisamos lembrar que mesmo as piores circunstâncias podem, de alguma forma, ser boas para nós no final.
Parece impossível não ser perturbado por externalidades como a morte de um ente querido. Mas os estoicos eram a favor de abraçar radicalmente a realidade. E a realidade, eles ensinavam, significa mudanças constantes, perdas e dificuldades.
"Alguém tem medo de mudanças? Bem, o que jamais pode acontecer sem uma mudança?", perguntou Marco Aurélio. "Pode você tomar um banho se a madeira que o esquenta não for mudada? Pode você ser alimentado, a não ser que aquilo que você coma mude? Pode qualquer outro benefício da vida ser alcançado sem mudanças? Você não vê, então, que para que você seja mudado é igual e igualmente necessário para a natureza do Todo?"
Apesar de defender a aceitação da realidade, longe de se resignar para situações duras, os estoicos gostavam de se preparar para elas.. Eles particularmente se guardavam contra a armadilha tão humana de "isso nunca aconteceria comigo". Humanos, afinal, tendem de ver as coisas cor-de-rosa quando pensam sobre o futuro: nós não seremos afetados por desastres naturais, doenças ou guerras, e o empreendimento econômico ou a relação romântica irão muito bem, é claro.
Se você alguma vez já viu acontecer com qualquer outra pessoa, porém, pode absolutamente acontecer com você, alertou Sêneca.
"Deveria me surpreender se os perigos que sempre me cercaram um dia me alcançarem?" Ainda assim, muitos recusam-se a pensar em ou planejar para esse tipo de desfecho.
"Um número grande de pessoas planeja uma viagem marítima sem pensar numa tempestade", escreveu ele. "É tarde demais para a mente se equipar para enfrentar perigos uma vez que eles já estejam lá. 'Eu não achei que isso fosse acontecer' e 'Você poderia ter imaginado que poderia se desdobrar nisso?' Por que não, nunca? Saiba, então, que qualquer condição pode mudar, e qualquer coisa que aconteça com outras pessoas pode acontecer com você também."
Segundo os estoicos, esses tipos de bloqueios nos conduzem a enormes decepções. Ao considerar os piores desfechos possíveis, nós nos sentimos mais preparados emocionalmente para encará-los quando eles chegarem.
Claro, nós provavelmente então nos prepararemos de forma prática também - provavelmente deixando as coisas um pouco mais fáceis caso um desastre realmente ocorra. Um exercício ainda adotado em escritórios e departamentos governamentais por todo o mundo, hoje em dia, é frequentemente chamado de "premortem". Nos tempos antigos, tinha um nome mais interessante: era um "premeditatio malorum" (premeditação de males).
Planeje para o futuro, sim, mas não fique preso nele. Tenha confiança em sua própria habilidade para enfrentar qualquer circunstância lançada na sua direção - da mesma forma com que você sempre teve.
"Não deixe que o futuro o perturbe. Você chegará nele, se for isso que você precisa fazer, possuído da mesma razão que você aplica agora no presente", escreveu Marco Aurélio.
Em vez disso, concentre-se no presente momento. Isso inclui praticar gratidão pelo que nós temos agora, não focar naquilo que gostaríamos de ter (ou evitar) no futuro.
Ele também alertou contra acrescentar quaisquer suposições adicionais para qualquer coisa que você veja. "Não elabore para si mesmo além do que as impressões iniciais lhe informam", escreveu o imperador-filósofo.
"Eu vejo que meu filho está doente. Isto é o que eu vejo: eu não vejo que ele está em perigo." Considere isso um antigo alerta contra catastrofismo, uma das "distorções" contra as quais terapeutas comportamentais cognitivos ajudam pacientes a se proteger.
Como os platonistas, os estoicos diziam que nosso principal objetivo em vida é nos sobressairmos em sermos humanos. A natureza humana é, acreditavam eles, social - tanto que a justiça (a qual, na filosofia antiga, vai além do conceito de 'equidade' para incluir nossas obrigações perante outras pessoas e nossas comunidades) era uma de suas principais virtudes.
Ajudar outros, portanto, era importante. Também era, porém, nos protegermos contra adotar o sofrimento ou a raiva de outra pessoa tão apaixonadamente quanto se ela fosse sua própria. Sem dúvida, demonstre simpatia com alguém que esteja consternado, escreveu Epicteto. "Mas não se solidarize com todo seu coração e sua alma."
Também não tenha vergonha de pedir por ajuda, escreveu Marco Aurélio: às vezes, é a única maneira de você completar a "principal tarefa" de sua vida - fazer a sua parte para contribuir da melhor forma que você puder.
Apesar do desdém pelas "paixões", como pesar, e seu conselho para que não nos deixemos ser sugados por elas, os estoicos entendiam muito bem que, para a maioria de nós, esses sentimentos ainda emergiriam.
Da mesma forma com que oradores modernos como Brené Brown aconselham evitar "entorpecer" emoções negativas, os estoicos argumentavam que nós não deveríamos tentar "enganar" sentimentos como tristeza e raiva. Sair de férias ou mergulhar no trabalho os afasta apenas temporariamente. Quando eles voltarem, provavelmente voltarão mais fortes.
"É melhor conquistar nosso pesar do que enganá-lo", escreveu Sêneca. Mas como? Hoje psicoterapeutas podem sugerir "sentir os sentimentos", processando-os e falando sobre eles. Tara Brach, uma conhecida psicóloga clínica e guia de consciência, sugere a "pausa sagrada" - dar um tempo para simplesmente parar e se conectar com nossas emoções, mesmo no meio de um surto de raiva ou tristeza. Para Sêneca, a solução é simplesmente estudar filosofia.
Um exercício que Marco Aurélio sugeriu foi imaginar que você está olhando, do alto, para a Terra, vendo tudo que acontece. Então imagine a longa linha de tempo da história: as pessoas que viveram muito antes de você e as que viverão depois (como a versão antiga da visualização de Grande Canyon que alguns terapeutas recomendam).
"Pense na existência como um todo, da qual você é apenas uma minúscula parte; pense em todo tempo em que você recebeu um momento breve e passageiro; pense no destino - em qual fração disso você está?" Afinal: "Todo oceano é uma gota no Universo", escreveu o imperador. "Todo o tempo presente é um pingo de eternidade." (Amanda Ruggeri é uma jornalista sênior da BBC Future. Ela está no Twitter como @amanda_ruggeri; BBC Brasil, 31/3/22)
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