CRIANCA BRINCANDO-Irina Velichkina-Adobe Stock

Com a partida, resta o paradoxo de ver o desejo realizado de, após décadas, ter o “ninho” só para si, ao mesmo tempo em que lida com um silêncio ensurdecedor

É mais do que a saudade de ter a casa ocupada pela onipresença desses hóspedes preguiçosos, demandantes e injustos que chamamos de filhos.

Já estava previsto no primeiro dia em que a criança dormiu fora de casa, mas pode ter sido no primeiro dia da creche, no desmame ou, talvez, no parto. Para alguns, em nenhum desses momentos: a ficha pode ter caído na entrada no ônibus da primeira excursão escolar. Entender que os filhos vão é ficha que nunca para de cair, mas tem seus momentos cruciais.

A forma como encaramos essa ida não está solta no vácuo, sendo regida por expectativas e fantasias próprias dos discursos de cada época. Nossa geração é aquela que apostou em criar intimidade com os filhos, assim como gerações anteriores apostaram na autoridade e na independência. Cada uma paga o preço por suas escolhas, não cabendo nostalgia.

O dito "ninho vazio" —expressão piegas, mas consagrada em vários idiomas— é mais do que a saudade de ter a casa ocupada pela onipresença desses hóspedes preguiçosos, demandantes e injustos que chamamos de filhos. Afinal, é prerrogativa dos mais jovens se fazerem de tontos enquanto os mais velhos se vangloriam de saber tudo. Bastam uns meses morando sozinhos que os filhos revelam capacidades insuspeitas de cuidar de si mesmos e de seu pequeno reino recém conquistado.

Para quem fica resta o paradoxo de ver o desejo realizado de, após décadas, ter o "ninho" só para si, ao mesmo tempo em que lida com um silêncio ensurdecedor. Se fosse apenas falta dos filhos, a dita "síndrome do ninho vazio" não mereceria a atenção que a mídia lhe dá. (E fica aqui meu protesto veemente contra a patologização/medicalização midiática de todos os fenômenos da vida ordinária)

A questão que me interessa hoje, no entanto, diz respeito ao acerto de contas que fazemos com o tempo cada vez que um marco da finitude se coloca. Não há formatura que não nos remeta ao primeiro dia de aula, não há despedida que não nos transporte para os começos. O tempo é essa invenção humana que afeta todos os seres, mas só a nós angustia a ponto de nossa vida se resumir à tentativa de aprendermos a lidar com ele. A morte deixa claro quem ganha a batalha contra o tempo e são poucos entre nós que conseguem seguir os passos do filósofo Pagodinho: "deixa a vida me levar".

Os filhos saem, na melhor das hipóteses, nos desprezando o suficiente para conseguir fazê-lo sem culpa, e voltam como visita (sempre folgada, claro!). A nós resta a elaboração do tempo que passou entre a primeira troca de fralda e o caminhão de mudança. E aí fica a questão: o que fizemos afinal da juventude até aqui, uma vez que essas décadas são aquelas durante as quais nos tornamos irremediavelmente velhos. Insisto na palavra velho porque acho um desserviço fingir que envelhecimento é um termo pejorativo (velho sonha, deseja e trepa o quanto quiser).

O ninho vazio é cheio de lembranças de como éramos ingênuos, despreparados e arrogantes a ponto de assumir a tarefa de criar outra pessoa. Mas também de como fomos corajosos e esperançosos ao fazê-lo. Se os jovens se veem projetados num futuro abismal —muitas vezes paralisante— a nós cabe prestar contas de um passado recente no qual fizemos nossas escolhas. Trata-se de elaborar justamente o ponto em que eles estão agora e cujos resultados imprevisíveis também terão que prestar contas a si mesmos em algumas décadas.

A pausa necessária para o reconhecimento da passagem da juventude para a velhice não deveria servir de desculpas para a precipitação dos fins. Feito o trabalho de luto, a flecha do desejo deverá ser relançada, assim como será a dos nossos filhos em seu tempo.

Moral da história: o bicho voa (Vera Iaconelli é diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP; Folha de S.Paulo, 16/10/23)

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