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Uma das maiores riquezas que alguém pode ter é um amigo. Os amigos são irmãos que a vida nos deu. Há mais de 30 anos tenho imenso orgulho de privar da amizade de um dos maiores intelectuais que conheço, Ercy José Soar. Ele é médico psiquiatra, terapeuta e autor dos livros “A Arte de Desaprender” e “Os Outros que Somos”, deste último tive a honra de fazer o prefácio.
No último sábado, num agradável almoço com bom vinho e um prato que não deu muito certo, iniciamos uma discussão sobre a transgeracionalidade na sociedade contemporânea. Tratamos de escrever um artigo em conjunto. Ele mandou o que deveria ser um rascunho, só que não tive coragem de alterar uma vírgula sequer. Então, deixo a palavra com meu amigo Ercy.
“Nas sociedades tradicionais, os adultos e os idosos eram modelos de conduta e de identidade para os mais jovens. Uma criança desejava ser como seus pais o mais cedo possível, já que as crianças eram praticamente invisíveis naquele universo. Para um menino, o ideal era ser um caçador, ou guerreiro, como o pai. Para a menina, fazer parte das tarefas do universo adulto feminino, o plantio e a colheita, o preparo dos alimentos, o artesanato, e, sobretudo, a procriação e o cuidado das novas gerações.
A rigor, a adolescência é uma invenção muito recente. As pessoas, nas sociedades tradicionais, deixavam de ser crianças e se tornavam adultas – passagem marcada por rituais de iniciação – assim que entravam na puberdade. Os casamentos, aos olhos de hoje extremamente precoces, marcavam essa transição. Mesmo que tomemos o caso das sociedades tecnologicamente mais adiantadas, o mundo ocidental, até meados do século passado o ingresso no mercado de trabalho dava-se muito cedo, no máximo no início da terceira década de vida, assim como a formação das novas famílias. Os jovens do pós-guerra casavam-se antes dos vinte e cinco anos de idade.
Dito de forma mais simplificada, as crianças queriam ser como seus pais, e os pais queriam ser como os avós, os anciãos, depositários da sabedoria e da tradição, e respeitados por sua experiência de vida. O ideal estava atrás, na geração anterior. Hoje, vemos a inversão dessa equação, com o ideal (implícito, inconsciente de forma geral) “à frente”, com adolescentes infantilizados, enquanto os adultos e os idosos acalentam fantasias de se manterem jovens indefinidamente. As mães querem ser “amigas” de suas filhas e das amigas de suas filhas; os pais querem na medida do possível ser “parças” de seus filhos, mesmo que para isto tenham de abrir mão de seu papel de educadores, o que pressupõe o estabelecimento de limites e a capacidade de impor frustrações.
A cultura popular contemporânea, expressa em posts, vídeos e memes nas redes sociais, reforça esse modelo na divulgação sem qualquer pudor de procedimentos estéticos e atividades físicas voltadas a um ideal de beleza estritamente “jovial”. Associada a isto, vem a ideia de que tudo pode ser alcançado, desde que se tenha força de vontade e pensamento positivo, ou seja, a inconformidade com as limitações próprias à idade e a decadência física.
Os avanços médicos e sanitários, e o acesso aos recursos alimentares e a informações sobre saúde e bem-estar, têm de fato expandido a vida e projetado adiante o que se entendia por maturidade e por velhice. Há inúmeras vantagens em que permaneçamos mais jovens, produtivos e saudáveis por mais tempo. Mas é necessário que possamos construir novos modelos do que se entende por “vida adulta” e por “terceira idade”, que não sejam guiados pela negação do tempo, e pelo ideal de juventude eterna. Precisamos construir espaços em que o resgate da experiência e da sabedoria possa fazer contraponto ao contínuo aprendizado com as gerações mais jovens.
Se nas sociedades tradicionais o tempo era imóvel (a pessoa nascia, crescia e morria num contexto que sofria pouquíssimas variações do ponto de vista dos costumes e da cultura material), hoje a compressão do tempo-espaço nos impõe um desafio maior do que nossos pais e avós podiam imaginar. Temos de ser adultos, e idosos, num contexto de mudanças culturais e tecnológicas muito aceleradas. Ser uma repetição do que tinham sido os pais e avós era, nas sociedades tradicionais ou até o século passado, muito mais fácil do que os desafios que temos hoje: acompanhar as rápidas mudanças tecnológicas e culturais da sociedade contemporânea. Mais do que nunca antes, precisamos aprender com as gerações mais jovens, não de um jeito a torná-las modelo para nós, mais velhos, mas no sentido de fertilizar nossa própria experiência e de desaprender velhos preconceitos e comportamentos estereotipados.
Aqueles que antecedem a geração dos Millenium, ou, grosso modo, todos os que tem mais de quarenta anos de idade, conhecem o privilégio e o preço de ter nascido num século analógico e de viver num século digital; de haver crescido numa sociedade sexista, classista, adultocêntrica e repleta de preconceitos e se ver hoje numa sociedade marcada pelo aprendizado de novas pautas de comportamento, inclusive discursivo, em que velhas discriminações tornaram-se inaceitáveis. Isso a despeito do narcisismo e da hipervalorização da estética.
Em resumo, a nossa é uma difícil tarefa: a de mostrar às novas gerações o que há de bom na vida adulta e o quanto pode haver de sabedoria na velhice; enquanto com ela desaprendemos o jeito antigo de sermos adultos ou idosos” (Ercy Soar é médico psiquiatra e psicoterapeuta, mestre em Psicologia e doutor em Ciências Humanas. Atua na rede privada de Florianópolis (SC); Jurandir Sell Macedo Jr é doutor em finanças comportamentais, professor universitário e, desde 2003, ministra na Universidade Federal de Santa Catarina a primeira disciplina de finanças pessoais do Brasil. É autor de inúmeros livros sobre educação financeira e tem pós-doutorado em psicologia cognitiva pela Université Libre de Bruxelles. Escreve sobre Finanças 50+ quinzenalmente, às quintas-feiras. Instagram @jurandirsell E-mail jurandir@edufinanceira.
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